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Live #5 - Obesidade em tempos de Covid-19 e as Cognições de Permissão

Dra. Ana Maria Martins Serra, PhD - Instituto de Terapia Cognitiva, São Paulo, SP (agosto de 2020)



Transtornos alimentares estão associados a severas perturbações no comportamento alimentar que podem levar ao emagrecimento extremo ou à obesidade. Dentre as várias formas de transtornos alimentares, neste artigo priorizaremos a obesidade e o modelo cognitivo do comportamento alimentar compulsivo.

Neste momento de Pandemia e distanciamento social, com suas complexidades e incertezas, a obesidade reveste-se de grande relevância. Efetivamente, desde o início da Pandemia, temos observado um aumento significativo na ocorrência da obesidade e do sobrepeso na população em geral. Temos ouvido, com muita frequência, pessoas se queixando de que ganharam peso desde o início da "quarentena", alguns reportando um ganho substancial.

Posso afirmar que uma boa parte dos pacientes que buscarem suas clínicas, por dificuldades surgidas durante ou em consequência da Pandemia e da quarentena, poderão ter, como uma de suas metas terapêuticas, a perda do peso ganho durante a quarentena.

Notem que a perda de peso representa uma meta terapêutica de médio e longo prazo, portanto necessitará ser abordada desde as primeiras sessões e, provavelmente, durará até as sessões de terminação e de follow-up. Além de conseguirmos que o paciente atinja o seu peso ideal, temos que dotá-lo de estratégias que lhe permitam manter esse peso.

Por considerar a obesidade um tema de alta relevância em nossa prática clínica, especialmente em tempos de Covid-19 e de distanciamento social, apresentarei o modelo cognitivo do comportamento alimentar compulsivo, que reflete uma adaptação do modelo cognitivo de desenvolvimento da dependência química, proposto por Liese e Franz (1996, 2005). O comportamento alimentar compulsivo conduz à obesidade e representa o comportamento em que são violados os princípios da qualidade e da quantidade na ingestão de alimentos. Abordaremos também dois importantes conceitos aplicados ao modelo cognitivo de comportamento alimentar compulsivo: os "Estágios de Mudança" (Prochaska e cols., 1996, 2005) e as "Cognições de Permissão" (Serra, 2018). Venho adaptando ambos os conceitos na prática clínica com obesos, mas que também foram propostos originalmente na área de TCC aplicada à dependência química.

Quanto à Pandemia, vemos que, de várias formas, a obesidade ganhou grande relevância, com pessoas se queixando de aumento de peso, por questões de saúde ou de estética. Temas associados tornaram-se frequentes em conversas, como o ganho e a perda de peso, comer menos e mais saudavelmente, dietas miraculosas, exercícios físicos online, etc.

Mas o aumento de peso na população em geral fez-se evidente. Não obesos tornaram-se os novos obesos. Obesos em grau moderado tornaram-se obesos severos. Obesos severos tornaram-se obesos mórbidos. E, em todos esses casos, essas pessoas tornaram-se obesas a um alto custo emocional, associado à autodepreciação, à autodesmoralização e os seus efeitos negativos sobre o comportamento alimentar e sobre a saúde.

Esse quadro ocorreu em associação a vários fatores, principalmente:

  • As incertezas e as perdas pessoais, financeiras, inclusive a perda de vidas associadas à Pandemia, e que deram origem a um aumento na incidência de transtornos emocionais na população em geral, com as pessoas negligenciando a alimentação saudável, e, ao contrário, se alimentando mais desregradamente.
  • Frequentemente, ouvimos pessoas nos dizendo: "eu como muito quando estou ansioso ou ansiosa", ou "quando estou deprimido ou deprimida". Mas não é a ansiedade ou a depressão que nos faz comer mais, e sim a busca de compensação para as sensações negativas, de ansiedade ou depressão. A ingestão de alimentos, especialmente aqueles que o sujeito tem como saborosos, proporciona ao sujeito um prazer imediato, representa uma forma de satisfação instantânea, portanto uma forma fácil e acessível de compensação emocional diante das dificuldades decorrentes da Pandemia. Porém, compensa a ansiedade ou a tristeza, apenas temporariamente e a um alto custo, como veremos mais à frente.
  • Outro fenômeno recente, e que se revestiu de grande importância na cultura, é a experiência do home office, como consequência da quarentena e que facilitou o acesso a alimentos, inclusive àqueles que contribuem para a obesidade. Basta assaltar a geladeira e a despensa! E obviamente, mantê-las abastecidas de alimentos proibidos a quem deseja manter a linha e a saúde.
  • Mas o fenômeno do home office trouxe também a pressão de uma maior convivência entre familiares que antes conviviam pouco; e com a presença das crianças em casa, contribuindo para uma maior tensão no ambiente familiar. Essa tensão resultou em um aumento de conflitos, uma maior frequência de situações de violência doméstica e um aumento dos casos de transtornos emocionais, como a depressão e os transtornos de ansiedade, aos quais, por sua vez, estão associados ao comer compulsivamente e à obesidade.
  • Outra novidade cultural contemporânea: a popularização do delivery de alimentos. Esse fenômeno veio facilitar mais ainda o acesso a alimentos prontos ("não preciso preparar"). Vimos obesos severos se tornando obesos mórbidos, apenas através da compra de alimentos por delivery ao longo de todo o dia. A facilidade desse meio de acesso a alimentos - basta um telefonema - também contribuiu, e ainda contribui, para um grande volume de consumo de alimentos ao longo de cada dia, como uma forma de comportamento alimentar compulsivo.
  • Outro fator cultural de grande importância refere-se à influência da mídia social, na determinação do corpo ideal, que enaltece um padrão físico, uma forma corporal não realista e impiedosamente exagerada para muitas pessoas que se deixam envolver.

Quanto à obesidade e ao comportamento alimentar compulsivo, comumente referido como "comer compulsivo", . e fatores associados, apresentamos, a seguir, o modelo cognitivo que explica a instalação e a manutenção desse transtorno.

Primeiramente, observamos que distorções cognitivas constituem a psicopatologia central dos transtornos alimentares, inclusive a obesidade, o que favorece a utilização do modelo cognitivo do comportamento alimentar compulsivo. Em outras palavras, onde há distorções cognitivas, cabe o modelo cognitivo de conceituação e intervenção clínica, ou seja, cabe a TCC.

Efetivamente, o modelo cognitivo de comportamento alimentar compulsivo já é conhecido por muitos como o modelo cognitivo de dependência química, proposto por Liese e Franz (1986, 2005), e que se ajusta, de forma surpreendente, ao modelo cognitivo do comportamento alimentar compulsivo, que apresento a seguir.

O estímulo inicial pode ser interno - fome, vontade de comer, uma queda de humor, etc. Ou pode ser externo - uma experiência interpessoal adversa, uma perda, ou perceber no ambiente algum estímulo discriminativo para alimentos ou alimentar-se, como ver a geladeira ao chegar, ou sentir o aroma de algum alimento.

O estímulo inicial conduz à ativação de crenças sobre si - "não devo privar-me de nenhum prazer " - ou sobre alimentos e alimentar-se - "um alimento saboroso alivia o cansaço de um dia de trabalho".

As crenças ativadas levam a pensamentos automáticos negativos sobre, por exemplo, uma determinada sobremesa- "seria muito bom comer aquela sobremesa agora, outros já a experimentaram, e eu? Vou me privar?". Esses e outros pensamentos automáticos ativam o desejo intenso de comer a sobremesa.

Nesse momento, o sujeito pode passar diretamente às estratégias instrumentais para a obtenção do alimento, ou seja, abrir a geladeira e retirar a sobremesa, e ao comportamento imediato de comer insaciavelmente. Nesse caso, após comer um pedaço da sobremesa ou a sobremesa toda - o que refletiria um comportamento de "binge" ou orgia alimentar - o sujeito poderá se sentir, por exemplo, frustrado consigo, o que poderá leva-lo, por exemplo, a uma queda de humor, a qual, por sua vez, poderá atuar como um novo estímulo interno e o indivíduo terá fechado o círculo vicioso do comer compulsivo.

Agora, voltando ao desejo intenso, podemos hipotetizar uma sequência diferente, qual seja, diante do desejo intenso, o indivíduo entra em um estado de ambivalência, ou em um dilema, entre comer ou não comer a sobremesa. Ele resolverá esse dilema através do que eu chamo de "Cognições de Permissão". Através das cognições de permissão, o sujeito poderá conceder-se a permissão para comer, continuando com as estratégias instrumentais para acesso ao alimento desejado; e, com o comportamento de comer, ele fecha o círculo vicioso.

Mas há ainda a possibilidade dele priorizar as cognições de permissão para não comer, e desta forma, interromper a sequência, saindo do círculo vicioso e reforçando o desafio da crença ("não posso privar-me do prazer") e dos pensamentos automáticos. Desta forma, ele neutraliza o desejo incontrolável, ou seja, ao contrário, ele controla o desejo de comer o alimento. Ele pode inclusive sair energizado dessa experiência de ter-se permitido não comer, o que o ajudará em esforços subsequentes.

Falta ainda uma consideração: por que em um dos exemplos o sujeito não entrou em ambivalência, ao sentir o desejo intenso de comer, e o outro, sim, entrou?

Neste aspecto, aplicam-se os "Estágios de Mudança", de Prochaska e colaboradores (1986, 2005), Conforme notado acima, esse modelo foi originalmente proposto para os casos clínicos de dependência química. Entretanto, ele se aplica perfeitamente ao comportamento alimentar compulsivo. Referem-se a estágios de mudança em que um sujeito pode estar e que determinarão se ele entrará, ou não, em ambivalência; ou, estando em um estado de ambivalência, como ele resolverá o dilema entre comer ou não comer. São os seguintes os estágios de mudança, porém adaptados ao comportamento alimentar compulsivo:

  • Pré-contemplação: "não preciso mudar", "não há nada errado com meu padrão de alimentação".
  • Contemplação: "posso talvez beneficiar-me de mudanças".
  • Preparação: "chegou a hora de fazer algo diferente, tenho que mudar".
  • Ação: o sujeito se envolve em um programa para perder peso saudavelmente: "estou fazendo algo bom e necessário para mim mesmo".
  • Manutenção: "não sou mais um obeso".

Caso o indivíduo obeso esteja ainda nos estágios de pré-contemplação ou de contemplação, caberá ao terapeuta cognitivo-comportamental motivá-lo a progredir. Nesse caso, o primeiro objetivo terapêutico será levá-lo a superar esse estágios e chegar aos estágios de preparação e de ação.

Caso ocorram falhas, devem ser tratadas como lapsos e não necessariamente como recaídas.

Vamos voltar ao mesmo exemplo, aplicando o conceito de "Estágios de Mudança" e as "Cognições de Permissão", através das quais o sujeito resolve a ambivalência.

Através da ativação das crenças e dos pensamentos automáticos, o indivíduo chega ao desejo intenso de comer um determinado alimento extra-calórico e, possivelmente, em quantidade exagerada. Diante do desejo intenso, ele entrará ou não em ambivalência, dependendo de em qual estágio de mudança ele estiver. Se ele estiver em um estágio de pré-contemplação, ele passará diretamente às estratégias instrumentais e ao comportamento de comer e, provavelmente, exagerará, e continuará ganhando peso. Neste pontos, Freeman propõe, inclusive, um estágio inicial de Anti-Contemplação, anterior ao estágio de pré-contemplação, em que o sujeito está resistente e em negação total.

Se ele estiver em um estágio de contemplação ou de preparação para a ação, diante do desejo intenso de comer, ele muito provavelmente se verá em ambivalência e a resolverá através de cognições de permissão para comer ou não comer.

Mas se ele estiver em um estágio de ação ou de manutenção, então ele certamente resolverá a ambivalência através de cognições de permissão para não comer e, dessa forma, sairá do círculo vicioso do comer compulsivo.

Sobre as Cognições de Permissão, elas representam um instrumento de intervenção com inúmeras formas de aplicação. Pessoalmente, uso-as com tanta frequência em minha prática clínica, que a grande maioria de meus pacientes dominam o conceito e as usam nas mais diversas áreas de experiência. Por exemplo,

  • adolescentes usam cognições de permissão para estudar,
  • adultos para regular o horário de levantar-se e apresentar-se pontualmente ao trabalho,
  • doutorandos ou mestrandos para dedicar-se às teses que estão paradas,
  • jovens para caminhar diariamente ou frequentar regularmente a Academia, quando estão desmotivados,
  • profissionais, para arrumar o escritório que parece irremediavelmente desorganizado,

Além desses, as cognições de permissão podem ser aplicadas em muitos outros contextos.

Apenas notem que pode haver uma tendência de denominar as cognições de permissão como "cognições permissivas". Isso não é correto. Cognições permissivas remetem a algo negativo, em relação ao que a escolha permissiva representaria uma opção pelo prazer independentemente da meta do sujeito, que é a de comer saudavelmente. Ao contrário, "Cognições de Permissão" aplicam-se a ambos os casos: em que o indivíduo se concede a permissão para a opção funcional e que o levará à sua meta (por exemplo, meta de perder peso); ou ao caso em que o indivíduo se concede permissão para a opção disfuncional e que o levará na direção contrária à sua meta (por exemplo, ele ganhará mais peso).

No caso do modelo cognitivo de comportamento alimentar compulsivo e a resolução da ambivalência, exemplos de cognições de permissão para não comer o alimento não saudável podem ser: "estou indo tão bem em minha dieta, não vou por tudo a perder agora", ou "posso comer outra coisa", ou ainda "o prazer de comer dura tão pouco, mas minha saúde durará muito mais". E, por outro lado, exemplos de cognições de permissão para comer o alimento inadequado: "todos podem, por que eu não?", ou "não consigo viver assim, uma vida de privação", "não acredito que serei capaz de perder peso, desisto".

Conclusão:

A obesidade resulta de padrões alimentares que violam princípios de qualidade e quantidade e os padrões saudáveis de comportamento alimentar. O indivíduo perde o controle sobre os seus padrões alimentares.

O modelo cognitivo do comportamento alimentar compulsivo, neste artigo, reflete uma adaptação do modelo cognitivo de desenvolvimento de dependência química, originalmente proposto por Bruce Liese e Robert Franz (1986, 2005), priorizando a ação das crenças disfuncionais, que ativam pensamentos automáticos negativos, que levam ao desejo intenso de consumir o alimento inadequado e em quantidade exagerada. Neste ponto o indivíduo poderá entrar, ou não, em um estado de ambivalência, dependendo do estágio de mudança em que ele estiver. Caso esteja em um estágio de não contemplação ou até de anti-contemplação, ele passará direto pela ambivalência, e recorrerá a estratégias instrumentais para a obtenção do alimento, e para o comportamento de comer o alimento inadequado e em dose exagerada.

Porém, caso ele esteja em um estágio de contemplação ou de ação, ele entrará em um estado de ambivalência, que ele resolverá por meio das cognições de permissão para comer ou para não comer. As cognições de permissão para comer o alimento inadequado, o levarão a permanecer no círculo vicioso. Enquanto que as cognições de permissão para não comer, o levarão a deixar o círculo vicioso, a manter os ganhos até então, e à realização de sua meta terapêutica, de perder peso e viver saudavelmente.



Sugestões de Leitura:

Liese, B. S., Franz, R. A. (2005) Tratamento dos transtornos por uso de substâncias com a Terapia Cognitiva: Lições aprendidas e implicações para o futuro. Em P.M.Salkovskis (Editor) Fronteiras da Terapia Cognitiva. A.M. Serra (Organizadora da Edição Brasileira). (pp.405-435). São Paulo-Ed. Casa do Psicólogo.

Prochaska, J.O., DiClemente, C.C., Norcross, J.C. (1992). In search of how people change: Applications to addictive behavior, American Psychologist, 47, pp.1102-1114.

Serra, A.M. Teoria e Terapia Cognitivo-Comportamental. (2018). Em O tratamento da dependência química e as terapias cognitivo-comportamentais. Org. N.A.Zanelatto, R.Laranjeira, 2a. edição. (pp.87-101). Porto Alegre:ArtMed.

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