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Discurso sobre os direitos da criança e do adolescente que Esther Maria de Magalhães Arantes, pelo Conselho Federal de Psicologia, apresentou na comissão do Senado Federal em uma Audiência Pública sobre o Projeto de Lei 4126 de 2004 que propõe o Depoimento sem Dano (DSD) de crianças e adolescentes quando envolvidos, como vítimas ou testemunhas, em casos de infrações judiciais, inclusive casos de violência, abuso e negligência das crianças e adolescentes. (Inserido no site do CFP em 29.08.2008.)
Esther Maria de Magalhães ArantesBoa tarde senhoras e senhores senadores. Demais presentes.
Estamos aqui para um debate difícil, porque o que vamos aqui discutir são diferentes entendimentos do que seja a Proteção Integral à criança e ao adolescente. É um debate difícil, não apenas pela importância e complexidade do tema, como também pelo respeito e admiração que temos por todos aqueles que não pensam como nós. Não estamos aqui combatendo inimigos mas divergindo democraticamente de companheiros - pessoas que, como nós, estão igualmente interessadas e comprometidas com a implementação da Lei Federal 8.069/1990 - o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Posto estas considerações iniciais, passemos ao que está estabelecido na legislação nacional sobre a Proteção Integral. Tal proteção encontra-se claramente formulada no Estatuto, sendo que o seu art. 1º diz exatamente isto: "Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente".
Podemos dizer que a Proteção Integral, de que trata o Estatuto, se organiza em torno de três fundamentos ou princípios básicos, sem os quais não existe tal Proteção Integral:
1) crianças e adolescentes são sujeitos de direitos;É condição para a Proteção Integral que estes três princípios venham juntos e nunca separados ou em oposição. Portanto, não se deve opor, por exemplo, "proteção especial" e "responsabilização", no caso do adolescente autor de ato infracional, bem como não se deve opor "sujeito de direitos" e "pessoa em condição peculiar de desenvolvimento", particularmente em situações de vulnerabilidade, quando, mais do que nunca, estes dois princípios devem vir juntos, como nos ensina Wanderlino Nogueira Neto . Este é o desafio posto para todos nós, o de entendermos o caráter ético, jurídico, político e social do Estatuto da Criança e do Adolescente.
O Estatuto assegura à criança e ao adolescente a condição de sujeito de direitos, retirando-os da condição de objeto que por muito tempo lhes foi imposta. No entanto, em nenhum momento o Estatuto abole a diferença entre crianças e adultos. Ao contrário, em seu artigo 2º, o Estatuto distingue, inclusive, a criança do adolescente, considerando criança a pessoa até doze anos de idade incompleta, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade.
Estas não são distinções burocráticas. Elas produzem efeitos! Não fosse assim, não seriam penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial, conforme dispõe o artigo 228 da Constituição Federal. Não fosse assim, a legislação também não imporia restrições ao acesso de crianças e adolescentes a determinadas situações reservadas apenas ao adulto.
Não se trata, evidentemente, de infantilizar as crianças e os adolescentes, de reduzi-los à condição de objeto, numa retomada do chamado menorismo. Trata-se apenas de assegurar, ao mesmo tempo e no mesmo movimento, a condição da criança e do adolescente como sujeito de direitos, pessoa em desenvolvimento e prioridade absoluta.
Isto posto sobre a Proteção Integral, passemos então ao PL.
Se aprovado o PL, significará o acréscimo de toda uma Seção VIII ao Título VI, do Capítulo III do Estatuto da Criança e do Adolescente, alterando também o Código de Processo Penal. Trata-se de Projeto de Lei que dispõe sobre a forma de inquirição de testemunhas e produção antecipada de prova, nas situações que envolverem crianças e/ou adolescentes vítimas e testemunhas de crimes.
Não consideramos este um acréscimo menor, uma vez que em lugar algum o Estatuto menciona que crianças e adolescentes devam ser inquiridos judicialmente para produção antecipada de prova, seja como vítima ou testemunha. No Capítulo VI, relativo ao Acesso à Justiça, o artigo 142 do Estatuto diz que "Os menores de dezesseis anos serão representados e os maiores de dezesseis e menores de vinte e um anos assistidos por seus pais, tutores ou curadores, na forma da legislação civil ou processual". O Parágrafo Único diz que "A autoridade judiciária dará curador especial à criança ou adolescente, sempre que os interesses destes colidirem com os de seus pais ou responsáveis, ou quando carecer de representação ou assistência legal ainda que eventual". Portanto, entendemos que o PL não trata da regulamentação de matéria existente no Estatuto mas sim acrescenta matéria nova, qual seja, a inquirição judicial de criança e adolescente,vítima ou testemunha, para a produção antecipada de prova.
Além do mais, tal procedimento, previsto quando se tratar de crimes contra a dignidade sexual, poderá também ser utilizado para a apuração de crimes de natureza diversa, de acordo com o Parágrafo Único do Art. 197-B.
Curiosamente, o procedimento de inquirição denominado Depoimento Sem Dano não é previsto para o único caso em que o Estatuto menciona uma situação que o permitiria. Trata-se do Capítulo III, relativo às Garantias Processuais, onde se lê:
Art. 110 - Nenhum adolescente será privado de sua liberdade sem o devido processo legal.
Art. 111 - São assegurados ao adolescente, entre outras, as seguintes
garantias:
pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional,
mediante citação ou meio equivalente;
igualdade na relação processual, podendo confrontar-se
com vítimas e testemunhas e produzir todas as provas necessárias
à sua defesa
direito de ser ouvido pessoalmente pela autoridade competente;
direito de solicitar a presença de seus pais ou responsáveis
em qualquer fase do procedimento.
Assim, antes de decidirmos sobre a técnica ou o modo da inquirição, devemos primeiro decidir se o direito da criança de se expressar e de ser ouvida, tal como está no Estatuto, significa o mesmo que ser inquirida judicialmente como vítima ou testemunha para produção de prova antecipada, podendo tal prova se voltar, inclusive, contra seus pais e familiares.
Perguntamos: Estaria o PL equiparando o direito de ser ouvido à obrigação de testemunhar ? Estaria a criança obrigada a depor? Os pais podem se opor e não permitir que seus filhos testemunhem? Poderão se recusar a falar? Assumem crianças e adolescentes, na condição de testemunha, o compromisso de dizer somente a verdade? Tem a criança pequena condição de entendimento do contexto no qual se encontra? Entende as conseqüências de seu depoimento? Podem crianças e adolescentes serem colocados na situação de depor contra seus pais?
São neste mesmo sentido os questionamentos feitos pela Procuradora de Justiça Maria Regina Fay de Azambuja, especialista em violência doméstica pela USP , para quem "Expressar as próprias opiniões, como menciona o documento internacional (A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança) tem sentido diverso de exigir da criança, em face de sua peculiar condição de pessoa em desenvolvimento, em Juízo ou fora dele, o relato de situações extremamente traumáticas e devassadora ao seu aparelho psíquico" (p.434). Segundo ela, não há que confundir a hipótese inovadora do art. 28, parágrafo 1º, do ECA, com a oitiva coagente da criança . Nestes casos a oitiva visa essencialmente produção da prova da autoria e materialidade (...) recaindo na criança uma responsabilidade para a qual não se encontra preparada (...)". (p. 435)
Entendemos que com esta metodologia de inquirição, busca o PL, principalmente, responsabilizar o agressor, não deixando impunes os crimes contra crianças e adolescentes, nas situações em que não existam terceiros adultos como testemunhas ou quando não haja indícios materiais revelados pela perícia médica.
No entanto, ressalvadas as boas intenções de seus proponentes, é legítimo perguntar se os fins justificam os meios. Ou seja, para reparar um dano podemos causar um outro dano? Alega-se, justamente, que a filmagem do depoimento da criança evitaria que ela repetisse inúmeras vezes a sua história, o que poderia causar-lhe um dano secundário. É ilusório acreditar que a filmagem do depoimento, por si, elimina o dano que existe numa tal situação, tornando-se inevitável perguntar o que vem a ser um dano - pois esta pergunta antecede a analise desse dispositivo, inventado justamente para proteger a criança de possíveis danos.
Quanto a este aspecto, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) e sua Comissão Nacional de Direitos Humanos (CNDH) vêm, há muito, demonstrando suas preocupações em relação ao dispositivo denominado "depoimento sem dano", tanto nos aspectos relativos ao exercício da profissão de psicólogo quanto em relação aos direitos humanos de crianças e adolescentes. Sobre o que seja um dano, pondera a CNDH/CFP que "Em resposta a uma situação traumática, inúmeros sintomas podem se colocar no universo infantil, dentre eles, o silêncio. Se a criança se cala, é preciso respeitar o seu silêncio, pois é sinal de que ainda não tem como falar sobre isto. Todos os esforços, no entanto, devem ser feitos pelos psicólogos, para que este tempo de falar para elaborar se apresente no universo infantil e, mesmo depois dessa elaboração, é preciso que a criança tenha o direito de decidir se quer continuar falando sobre o fato na justiça, na escola, ou mesmo, se for o caso, na terapia. Nós psicólogos devemos caminhar junto com a criança, seguindo as alternativas de suas possibilidades - para que o tecido subjetivo não se esgarce, já que se encontra bastante fragilizado - agindo como facilitadores para que a criança possa dar sentidos à experiência traumática e, conseqüentemente, utilizar a fala como modo de expressar verbalmente tais sentidos. Contudo, se a criança apresentar as condições psíquicas de falar sobre a experiência traumática, em uma situação de abuso sexual, é importante perguntar-lhe se ela deseja falar, se deseja dar o seu depoimento sobre o fato perante o juiz. Se a criança ou adolescente apresenta a condição e o desejo de falar, poderá falar diretamente ao juiz, pois decidiu por estar diante dele para falar sobre o fato, tendo uma história para lhe contar".
Assim, diante destas ponderações, causa-nos incômodo e apreensão que o PL sequer mencione uma idade mínima para que a inquirição possa acontecer, como também não menciona como será feita a segurança destas gravações, para que não venham a cair em mãos inescrupulosas e ser, por exemplo, divulgadas na internet. Também não limita a inquirição de crianças e adolescentes aos casos em que o depoimento da vítima seja a única prova possível de ser produzida, não descartando, inclusive, a possibilidade de reinquirição.
Da mesma forma, o PL parece relegar a segundo plano, o papel da equipe técnica tanto no atendimento à criança como no atendimento aos familiares e ao próprio abusador. No entanto, o Estatuto, em seus artigos 150 e 151, diz que cabe à equipe interprofissional fornecer subsídios por escrito, mediante laudos, ou verbalmente, nas audiências, e bem assim desenvolver trabalhos de aconselhamento, orientação, encaminhamento, prevenção e outros, sob subordinação à autoridade judiciária, assegurada, no entanto, a livre manifestação do ponto de vista técnico.
De acordo com o PL, a inquirição judicial de criança e adolescentes, na forma prevista, tem o objetivo de evitar que uma perda da memória dos fatos prejudique a apuração da verdade real. No entanto, cabe também perguntar o que vem a ser a "verdade real", principalmente quando contrastada com a subjetividade da criança e do adolescente.
Em nome desta "verdade real", desta "verdade verdadeira", o PL propõe que a inquirição da criança e/ou adolescente seja feita em recinto especialmente projetado para tal finalidade, contendo equipamentos próprios à idade do depoente. No entanto, gostaríamos de perguntar se a utilização de tais equipamentos, como brinquedos, fantoches, bonecos, e eventualmente papel e lápis para desenho, não se constituiriam, antes, em técnicas de extração da verdade, sem que a criança se dê conta de que está sendo inquirida?
Sobre isto, consideramos pertinente o que diz a professora de Direito Klélia Aleixo, quando pergunta se tal dispositivo, "Na medida em que (...) esconde o juiz, o promotor, o advogado e eventualmente o réu - os quais estariam na sala de audiências - não induziria a criança a acreditar que está em companhia apenas de uma pessoa de sua confiança, em nada modificando esta situação dizer à criança que o Juiz e demais pessoas encontram-se na sala ao lado?" Não seria a técnica do DSD, pergunta a professora, "uma forma de enganar o depoente, buscando angariar sua confiança no sentido de que ele revele o ocorrido, e assim produza prova judicial, ainda que mal compreenda o contexto em que se encontra e as conseqüências de sua fala? Não feriria, tal procedimento, o princípio da dignidade e do respeito à criança e ao adolescente, submetendo-os a uma teatrologia que subverte o próprio papel do psicólogo e de sua intervenção? "
Ainda, de acordo com as considerações da professora, "Em nome da "verdade real", o PL autoriza o juiz a determinar de ofício a produção de prova, antes mesmo da existência do processo penal. Permite-se ao juiz que atue como parte na produção da prova, recolhendo material que vai constituir o seu convencimento, o que compromete de maneira irreparável a sua imparcialidade no julgamento da causa".
Neste sentido, tanto a impunidade do agressor, quanto a busca da responsabilização a qualquer custo, devem ser evitadas, remetendo-nos à necessidade de primeiro avaliar a que se deve tão altos índices de condenação nesta modalidade de inquirição tecnológica em comparação com a modalidade tradicional, antes de propormos o DSD como lei para todo o Brasil.
Segundo a psicóloga e professora da UERJ, Leila Torraca de Brito, "o fato de técnica semelhante existir em outros países não significa que tenha havido consenso para sua implantação. Na Argentina, por exemplo, a alteração do Código de Processo Penal para que os depoimentos de crianças e de adolescentes fossem possíveis suscitou árdua polêmica entre os profissionais. (...) Na África do Sul, onde há mais de 10 anos se usa técnica aos moldes do Depoimento sem Dano, autores apontam algumas dificuldades que vêm ocorrendo, como o fato de os profissionais que fazem as perguntas serem, de certa forma, obrigados a reproduzir as questões tal como formuladas pelo Juiz, apesar de não ser esta a proposta original do trabalho". Cita Marlene Iucksch que "em palestra proferida na Universidade do Estado do Rio de Janeiro em 2007, explicou que técnica semelhante ao Depoimento sem Dano é realizada na França por policiais, devidamente treinados, que auxiliam a instrução do processo, tendo se mostrado surpresa ao ser informada de que, no Brasil, há proposta para que psicólogos realizem esta tarefa".
Para finalizar, permitam-nos a referência a um exemplo, tomado de uma situação trágica acontecida recentemente no Brasil: o da menina Isabella, que teria sido morta, de acordo com as investigações até agora realizadas, pelo próprio pai e madrasta, na presença de dois irmãos pequenos, um de 11 meses e outro de 3 anos de idade. Alguém teria ouvido a voz de uma criança, possivelmente este irmão de 3 anos, dizer algo mais ou menos assim: "Pára, pára. Pai, pai".
A morte da menina Isabella tem sido noticiada exaustivamente pela mídia escrita e televisiva, diga-se que algumas vezes de maneira sensacionalista, criando pânico nas crianças, muitas agora amedrontadas por terem que conviver com o pai e a madrasta. O sentimento de desproteção que tomou conta das crianças pequenas brasileiras deve nos preocupar e nos fazer pensar.
Também se aventa, de vez em quando, a hipótese de ouvir a criança de 3 anos, como testemunha, ainda mais agora, quando veio a público a fala de uma pessoa que teria conversado com a criança de 3 anos, logo após a morte de Isabella. Esta pessoa teria perguntado se havia mais alguma pessoa no apartamento, ao que a criança teria respondido que "não". A uma outra pergunta sobre o que teria acontecido naquela noite com a irmã, o menino apenas soluçou.
Este caso doloroso talvez possa nos ensinar algumas lições. Acreditamos que se o PL já tivesse sido aprovado, não haveria impedimento legal para que esta criança de 3 anos fosse ouvida como testemunha. Não há, no PL, menção alguma a faixa etária ou idade mínima em que crianças e adolescentes podem ser inquiridas como testemunhas. O PL também não se limita aos casos de abuso sexual, desde que a autoridade judiciária, de ofício ou a requerimento das partes, assim o determine - conforme já mencionado.
Esta criança de 3 não apenas perdeu a sua irmã, pela morte, como foi retirada do convívio com seus pais, dado que estes se encontram presos. Foi retirada de sua casa, de seu quarto, de seus brinquedos e também, salvo engano, da escolinha que freqüentava e, consequentemente, do convívio com seus coleguinhas.
Se é verdade que esta criança encontrava-se presente na cena do crime, porque nos opormos a que ela seja constituída como testemunha? Não vamos responder, apenas perguntar, já que a pergunta é também dirigida a nós: em que mundo queremos viver?
Por tudo isso propomos:
1. A realização de um seminário, cujo título não poderá ser outro senão a escuta de crianças e adolescentes em processos judiciais sob o marco da proteção integral e que a Excelentíssima Senhora Relatora aguarde a realização desse seminário que poderá subsidiar seu relatório antes de sua entrega. Consideramos que esta matéria necessita ser aprofundada e melhor discutida por vários profissionais e sob o olhar de diversos saberes.
2. Nós, enquanto Sociedade Civil, gostaríamos que o Senado Federal por intermédio de sua Comissão de Constituição e Justiça recomendasse ao Conselho Nacional de Justiça que fosse suspensa a utilização do instrumento do Depoimento Sem Dano pelos inúmeros questionamentos que vem sendo feitos como violador de direitos de crianças e adolescentes.
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